Foi convocada uma manifestação para amanhã, 26 de Novembro, “contra a denegação de justiça do nosso sistema judicial, com base no facto de ter ficado, por muito tempo, sem se pronunciar sobre uma providência cautelar junto do Tribunal Supremo (TS)”. Citamos as palavras de um dos promotores, Marcolino Moco, antigo primeiro-ministro e jurista.
Por Rui Verde (*)
Trata-se de uma acção intentada por um grupo de advogados contra o facto de o presidente da República, José Eduardo dos Santos, ter nomeado, em Junho passado, a sua filha Isabel dos Santos para o cargo de presidente do Conselho de Administração da Sonangol. Trata-se de uma convocação perfeitamente legítima, e justificada, num Estado Democrático de Direito, como afirma a Constituição angolana (artigo 2.º).
A liberdade de manifestação está garantida constitucionalmente. O artigo 47.º, n.º 1 determina que é garantida a todos os cidadãos a liberdade de manifestação pacífica e sem armas, sem necessidade de qualquer autorização e nos termos da lei. O n.º 2 do mesmo artigo acrescenta que as manifestações em lugares públicos carecem de prévia comunicação à autoridade competente, nos termos e para os efeitos da lei.
Ainda em sede constitucional haverá que mencionar o artigo 28.º da CRA, que atribui uma força jurídica reforçada ao artigo 47.º (e a outros preceitos referentes a direitos fundamentais). Esta força jurídica traduz-se na aplicação directa da liberdade de manifestação e na vinculação de todas as entidades à sua garantia. Isto quer dizer que existe um dever activo ou positivo de garantia da liberdade de manifestação por parte de todos, e um dever passivo ou negativo de não interferência. Os órgãos do Estado não podem proibir manifestações e devem contribuir para que estas decorram com toda a normalidade e segurança.
São estas as normas constitucionais sobre a liberdade de manifestação. Todavia, a CRA faz por duas vezes remissão para a lei ordinária, deixando um espaço de alguma discricionariedade ao legislador ordinário. Ou, dizendo de outro modo, a Constituição abre a porta a alguma actividade legislativa por parte da Assembleia Nacional ou do presidente no que diz respeito à liberdade de manifestação. Mas esse espaço não é arbitrário, já que legislador e executivo têm sempre que respeitar e garantir a liberdade de manifestação.
Contudo, baseando-se justamente nessa janela constitucional, alguns dos juristas mais destacados do regime estão a tentar, estranhamente, considerar a manifestação de 26 de Novembro como um crime. Vamos tentar perceber a argumentação subjacente.
Pressionar um tribunal é crime de coacção, nos termos do artigo 24.º da Lei n.º 23/10, 3 de Dezembro, a Lei dos Crimes contra a Segurança do Estado. E, sendo crime, a manifestação é ilegal nos termos do artigo 2.º da Lei das Manifestações, que, naturalmente, proíbe manifestações contra a lei.
Vejamos como se enganam os juristas do regime.
Dispõe o artigo 24.º da Lei dos Crimes contra a Segurança do Estado que aquele que, através de ameaça ou violência, coagir um órgão de soberania a não exercer os seus poderes ou a exercê-los num sentido determinado comete um crime.
A tipicidade criminal contém dois elementos:
A ameaça ou violência coactivas, para não exercício ou exercício num certo sentido dos poderes de um órgão de soberania.
Estes dois elementos formam aquilo a que se chama o tipo do crime e têm que se verificar cumulativamente.
Nem um deles se verifica.
a) Uma manifestação não é juridicamente uma ameaça coactiva. Pelo contrário, é o exercício de um direito fundamental. Só seria uma ameaça coactiva se cercasse o Tribunal Supremo e não deixasse os juízes de lá sair, ou se fosse a casa deles e as cercasse, por exemplo.
Não é nada disto que está previsto.
aa) Uma manifestação não é violência coactiva. Só o seria se a manifestação entrasse pelo Tribunal adentro e defenestrasse os juízes, ou queimasse carros, entre outras hipóteses.
Também ninguém anunciou que tal iria acontecer.
Pode argumentar-se, contudo, que é possível que isto aconteça. Se assim for (o que é muito improvável), apenas no momento em que tal sucede é que a manifestação se torna ilegal, nunca antes.
b) O objectivo da manifestação é que o Tribunal Supremo exerça os seus poderes. Que tome uma decisão, como está obrigado por lei. Portanto, o objectivo é evitar um crime, a denegação de justiça. A manifestação programada não pretende evitar que o Tribunal Supremo não decida, ou forçar a que decida num sentido. A manifestação só pretende que o Tribunal exerça os seus poderes, de acordo com a lei. Portanto, o facto real é exactamente o contrário do artigo punitivo. O objectivo da manifestação é constitucional e legal.
Temos uma manifestação pacífica a apelar ao cumprimento da lei.
Como pode isso ser ilegal? Só no país do “Pai Banana”, como canta MCK.
(*) Maka Angola